A budista brasileira

A Budista Brasileira

Desde a infância à adolescência, ela teve na sua prática religiosa um porto seguro para atravessar dificuldades. Mas agora na fase adulta, além de enfrentar as tensões de um curso universitário, ainda tem os problemas de uma relação amorosa fora dos padrões. Será que encontrará apoio em sua prática?


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Contos

O telefone tocou umas cinco vezes. Em todas, um parente confirmando ou querendo confirmar a reunião. A primeira chamada coincidiu com o barulho do despertador. Após atender a ligação, a dona da casa, meio zonza de sono, cambaleando, voltava pelo estreito corredor. A tarefa era despertar marido, filha e os parentes que passaram a última noite do ano de 1999 em sua residência.
A Sra. Thereza Fiorini acendeu a luz do quarto de Diana, a filha. Ninguém lá. Já estava na cozinha aprontando um café bem forte. O marido também não foi problema. O Sr. Vicente é madrugador, todos sabem.
Dureza seria sacudir os primos Diogo, Rita e Patrick. Ao contrário da prima Diana, beberam todas na noite anterior. Os tios e tias, contabilizando quatro adultos, estereótipos de responsável, pouco relutaram em se aprontar.
Decorridos trinta minutos, aos trancos e barrancos, estavam os dez estacionando defronte ao kaikan, divididos em dois carros. Diana conduzia um; o pai Vicente, o outro.
Havia começado o recital uns quinze minutos atrás.
Tiveram sorte. Conseguiram encontrar assentos.
Exceção aos primos e ao Sr. Vicente, que não eram budistas praticantes, Diana e a mãe, pisando dentro do templo, embalaram-se no ritmo da oração.
O pai Vicente havia praticado por muitos anos o budismo, antes de discutir com um dirigente. De lá para cá, sua fé e prática se retraíram. Vez por outra, acompanhava a esposa, mas preferia se esquivava.
A esposa com sua sutra, ao lado da filha, seguia o exemplo das dezenas de bocas, recitando:
Myô-hô-ren guê-kyô
Hô-ben pon. Dai-ni.
Ni-ji-sê-son. Ju-san mai.
An jô-ni-ki. Gô-shari hôtsu. Shô-bú-ti-ê...

O café e a fé serviam como excelentes estimulantes para mantê-los despertos, atentos às palavras que pareciam complicadas aos que estão chegando ali pela primeira vez ou que nunca viram uma sutra budista. Um bocejo aqui, um rosto amarrotado ali e até uma cochilada acolá faz parte da cena. Seria exigir muito o pique total mesmo dos membros mais fiéis às 8 horas da manhã do 1o. dia do ano.
Noite de réveillon, se não derruba, ao menos costuma deixar meio sonolento, visto que a maioria dorme muito depois das doze badaladas.
O templo é do budismo de Nitiren Daishonin.
_ Sossega menino! ¬– a mãe apertou o braço do pirralho de nove anos que, impaciente como qualquer criança, perturbava a concentração dela no que o pessoal lá na frente falava ao microfone.
Não seria justo deixar as crianças em casa, elas precisam se acostumar. E seria querer muito que prestassem atenção ao discurso por mais divertido que seja, ou permanecessem quietas. A maioria dos fiéis ali, porém, mostra simpatia e tolerância para com o empenho dos pais.
_ E agora, senhores e senhoras, teremos a mensagem de Ano Novo do presidente Daisaku Ikeda. O Sr. Inácio Yume fará a leitura – disse a mestre de cerimônias, sorridente, dezessete anos, exibindo o corpo de 1,81 m, magro e desenvolto.
O Sr. Inácio se aproximou do tablado.
As palmas o seguiram até o momento que alcançou o microfone e ofereceu breve saudação aos presentes. Pronto! Sinal explícito que sugeria total silêncio da plateia.
A mãe da criança barulhenta, meio atormentada, debatia-se consigo. Por fim, resolveu abandonar o recinto. Ninguém a expulsava, senão a própria consciência.
Ah, espere! A fujimbo, solidária, ofereceu-se para levar a criança para lugar reservado. Lá haveria mais crianças, igualmente indisciplinadas.
A leitura começou.
“Ano-novo de 2000. O portal da história está prestes a encerrar o velho século e abrir o terceiro milênio – vasto palco de uma nova cultura, de uma nova civilização.”
“As pessoas moldam a história. Particularmente, os cidadãos comuns devem ser os protagonistas.”
“Por que a revolução do ‘poder do povo’ das Filipinas foi bem-sucedida? O ex-presidente filipino Fidel Ramos declarou sem hesitar que foi porque as pessoas tinham fé e autoconfiança.”
“Avancemos em direção a uma nova era em que o ser humano seja o protagonista. E avancemos em direção a um mundo em que haja ampla comunicação entre todos os seus cidadãos. Isso, acredito, será de importância fundamental para a humanidade no século XXI.”
“Fico imaginando quantas pessoas existem no mundo que realmente acreditam poder mudar a humanidade por meio do poder dos valores espirituais?”
“A fusão da filosofia e do ser humano. Essa é uma realização inigualável do movimento popular da SGI que se propagou para todos os cantos do globo.”
“Observemos o mundo por um momento.”
“Há tantos lugares e comunidades neste planeta – com suas florestas, montanhas e desertos – sobre os quais sabemos tão pouco. Lugares e comunidades que deram surgimento a culturas, religiões e povos únicos.”
“O que une, no nível mais profundo, essa grande diversidade que parece resistir à coesão?”
“Esse ator unificador nada mais é que a nossa identidade comum como seres humanos.”
“Tudo começa pelo respeito à dignidade humana e pelo reconhecimento do valor inerente na vida de cada pessoa e da maravilha que é a existência humana.”
“Vamos, portanto, iniciar a nossa busca interior.”
“Como devemos viver?”
“Quais são os verdadeiros valores da vida?”
“Qual o propósito de nossa existência?”
“Temos de dizer adeus a um mundo que considera essas questões como insignificantes.”
“Os ensinamentos humanísticos do budismo criam cidadãos autoconfiantes e independentes.”
“Bons cidadãos são aqueles que amam tanto o seu país como o mundo. Uma forte aliança de cidadãos do mundo que possuem uma correta filosofia humanística irá transformar o mundo.”
“O desenvolvimento de cada pessoa constitui a base e a estrutura para o progresso da humanidade.”
“A rápida globalização está tornando as diferenças geográficas praticamente insignificantes e transformando o mundo num só.”
“Mas a globalização externa trouxe consigo sérios males sociais em forma de caos, estagnação e extermínio dos valores culturais.”
“O nosso movimento aspira à globalização interior – uma transformação no próprio ser humano e que se desenvolve em uma vasta rede de pessoas interiormente motivadas.”
“Vamos fincar profundamente as raízes da fé em nossa vida e procurar perceber nosso ilimitado potencial humano – não a partir de fora, mas de dentro. Vamos também plantar as sementes da paz de coração a coração, criando dessa forma um rico florescer da paz no século XXI.”
“Tenho absoluta certeza de que os esforços incessantes que os senhores estão empreendendo dia e noite, para esse fim, terão um significado infinitamente profundo para a história da humanidade no futuro.”
“Neste momento decisivo, enquanto assentamos as bases para o terceiro milênio, vamos continuar a encorajar e a apoiar uns aos outros e a avançar rumo à paz e à felicidade de todas as pessoas.”
“Estou orando sinceramente pela felicidade, pelos vigorosos empreendimentos e pela longevidade de todos os meus preciosos companheiros da SGI.”
Os discípulos sentiram-se fortalecidos ao término da leitura. Sentimento próprio dos que estão embebidos do poder místico da fé. Pena que, como é tão seguro e real este sentimento no crente, o é inteiramente incompreensível no não-crente.
Para os que não estão acostumados a reuniões ou encontros budistas, espantam-se com tal método oriental de conduzir um culto. Seja no templo da comunidade, ou nas regulares reuniões na residência de praticantes, a monotonia não é bem-vinda.
Menos oração, mais discussão. Menos monólogo, mais diálogo. Menos recital, mas interpretação da leitura feita do jornal semanal, o Brasil Seikyo. A monótona e ininterrupta repetição de princípios cede espaço à criatividade e à estimulação da massa cinzenta dos fiéis.
Diana se identifica com o budismo. “Que interessa ouvir os batidos chavões? Que quando se morre será assim ou assado? Que se deve praticar o bem almejando o futuro debaixo da terra ou em algum lugar no cosmo? Que adianta para a harmonia dos vivos sonhar com a tranquilidade dos mortos?”, são perguntas quando jovens para reforçava os pontos fortes de sua religião.
Para Diana a religião verdadeira tem que priorizar o ensinamento do homem para o homem. Devia cultivar o respeito a si mesmo e ao semelhante. Evitar chavões como abaixar a cabeça, antes dar a cara para bater ou suplicar que o bom-senso caia sobre a cabeça do nosso algoz. A Idade Média pregou atitudes como estas e o que resultou? Mortes e mais mortes. Despotismo e violação dos mínimos direitos do ser humano.
Desde quando pertencia a divisão de jovens Diana entendia que a religião precisa cultivar a discussão, a reflexão entre os fiéis. Nada de rezar latim para o povo que não entende latim. Se o exemplo do latim está ultrapassado, ia além: nada de pregar ao vento o que se pensa ser certo ou errado, e agir em desacordo.
Deve-se, sim, discutir em alto e bom som os princípios e a prática da fé do culto que estiver em questão.
“Na era da informação, a religião que segue o exemplo budista dogmando menos e dialogando mais se sobressai. A época é imprópria para o elemento passivo: que ouve e diz sim a todos os preceitos ditados por aquele que se intitula o chefe da tribo”, frase ouvida da líder da divisão das moças quando a ocasião era propicia para a transmissão dos valores da divisão.
Encerrada a reunião, a família Fiorini se mistura às inúmeras pessoas que lotam o templo.
À medida que dava e recebia cumprimentos, caminhava para fora do recinto. O sorriso, àquela altura, já havia refeito o rosto amassado de sono.
Os rapazes que tocaram duas músicas e as moças que fizeram apresentações, minutos atrás, agradando inclusive à visão e aos ouvidos dos menos sensíveis, agora desfilam, uns com seus possantes instrumentos, outros com a maquiagem melada pelo suor no rosto, ou dentro das roupas especiais.
Os artistas da divisão dos jovens ainda chamam a atenção para si. Exibicionismo perfeitamente perdoável.
Todas as tribos internas têm seu destaque. O salão colore-se com elementos das várias divisões que formam o núcleo da Sokagakai. A divisão das senhoras, das garotas, dos adultos e dos senhores se misturava. As crianças, que compunham o pompontai, eram minorias no momento; como foi dito, muitas permaneceram a roncar nas confortáveis camas ou a esperar o retorno da mãe.
Como chegamos aqui com a família Fiorini, é com ela que partiremos. Já no estacionamento, entramos no carro. As saudações, os sorrisos e as palavras de boa sorte nos acompanham até o portão.
Entraram na casa. Mãe e filha caminham para o Gohonzon. Saudação rápida. Desde que se converteu ao budismo, em 1978, a Sra. Thereza Fiorini nunca descuida da saudação, em busca de boa sorte, seja na hora de entrar ou sair de casa.
Em março, comemora seus vinte e um anos de prática. Pertence à comunidade de Santana.
Antes era católica, não praticante, mas católica. A conversão aconteceu um ano e meio após a primeira visita a uma reunião budista. Tudo por influência de suas colegas de classe da primeira faculdade que cursou. Um pouco antes da reunião, as duas colegas, Lúcia Seitan e Marta Fujimo, convidaram-na para assistir a uma apresentação no Luso. Era setembro de 1977, época do tradicional festival da primavera.
Fiorini aceitou o convite numa boa. Queria distrair-se.
A apresentação a sacudiu. Manteve-se superatenta, sem desviar o olhar dos protagonistas em cima do grande palco. Admirava-se pela harmonia, perfeição e natural encanto que uma boa apresentação produz no espírito do espectador.
_ Essa companhia é boa. Os artistas são excelentes. Legal vocês contratá-los. Ribeirão precisa dessas coisas – disse Thereza.
_ Sim, mas ninguém ali é contratado. Tampouco é uma companhia, quer dizer, não são artistas profissionais – Lúcia esclareceu.
_ Não? – espantou-se Thereza.
_ Não. São membros voluntários. Dependendo da disponibilidade de tempo, cada um contribui como pode para que o espetáculo aconteça. Repare nas divisões: por exemplo, as senhoras que estão no palco agora – e apontou – são da divisão das senhoras.
_ Interessante! Quer dizer que todos que subiram lá são voluntários?
_ Isto mesmo. Voluntários...
_ Mas... – ficou em dúvida em prosseguir.
_ Como conseguem a perfeição? – Lúcia adivinhou.
_ É que a gente não tem a impressão que eles são amadores.
_ Simples. Estão desafiando suas fraquezas, seus comodismos, suas preguiças, seus medos. É uma forma de servirem à paz mundial.
_ Quê? Paz mundial? Isto é filosofia.
_ Se ficasse só no papel, seria pura filosofia. Como você vê, há muito superamos este estágio. Ninguém ali recebe dinheiro, troféu ou prêmio. Ninguém ali está sendo pressionado para participar da apresentação. Cada um reconhece o benefício que o ato traz para si e para a humanidade.
_ É... Talvez seja isso que falta para a maioria: doarem-se mais a uma causa, serem mais voluntariosos, menos interesses.
_ Na verdade, temos nossos interesses. Se o dinheiro e o poder não ocupam espaço em nosso coração, por outro lado existe o interesse pela paz mundial. Sabemos que, para chegar à paz, por vezes apela-se para a guerra. A nossa guerra não tem armas de fogo ou maledicência. Só que não somos ingênuos: a maldade que infesta o mundo é grande. A maldade abomina a paz, alimenta-se do egoísmo reinante nos espíritos atormentados, cujo carma acumulado em vidas passadas impede visualizar formas mais sadias de viver com seus semelhantes. O iluminado tem o dever de ajudar estes espíritos.
_ Espíritos atormentados? – Fiorini, meio com o pé atrás, forçou uma ironia. – Significa que todos que não são budistas são espíritos atormentados?
_ Eu não disse isto.
_ Hm...
_ Jesus Cristo não era budista, mas foi um espírito iluminado. Um espírito em estado de graça pode existir fora da religião, porque ele já é a própria encarnação do religioso. O papel da religião e, em especial da filosofia humanista, o budismo que pratico, é possibilitar aos enfermos de espírito, com carma pesado ou leve, a paz que o iluminado tem por natureza. Inclusive o iluminado por natureza encontra no budismo uma porta para tornar o mundo mais justo através de sua iniciativa iluminada.
_ Mas não é isso que vejo em muitas religiões. Tem muita gente enriquecendo às custas do povo.
_ A religião em si nenhum mal representam para a humanidade. Mas, como em todo organização, há os espertos infiltrados que unicamente desejam apropriar-se e espoliar a boa-fé alheia.
Fiorini parou para refletir. Não era ateia, mas há anos deixou de conceber a existência de um deus semelhante ao homem, sentado num trono alado, rodeado de anjos e santos.
A apresentação prosseguia. Fiorini ia se afundando na apreciação do espetáculo. As pessoas que apareciam no palco, dando o máximo de si. Imagem suficiente para prender a atenção, silenciar assuntos paralelos. Para não dizer que mais uma perguntinha conseguiu escapulir de sua boca, em meio ao som harmônico que saía dos instrumentos da divisão dos jovens, houve a seguinte.
_ Como pode! Duma hora para outra, passar a tocar tão bem?
_ Simples. É porque não é de uma hora para outra.
Houve um silêncio. Em seguida, a amiga continuou.
_ Durante meses, os grupos treinam bastante. Na maioria das vezes, o membro oferece seus fins de semana e feriados. É. Todos têm seus compromissos: escola, trabalho, família. A organização sabe disso e tenta facilitar o acesso. Treinam nas horas vagas. Mesmo assim, requer disciplina excepcional. Além de haver pouco tempo, a maioria está moída, após a semana de trabalho.
_ Sacrificam as horas de lazer?
_ Em parte. Quando saudável e sensível aos espíritos dos fiéis, a religião já é o lazer. Sabe promover atividades que dão prazer, ao mesmo tempo em que acrescenta algo útil.
Dias mais tarde, a própria Fiorini tomou a iniciativa de ir a uma reunião da comunidade, realizada quatro vezes na semana, na casa dos membros.
Entrou na sala.
Vintes cadeiras ou mais, enfileiradas transversalmente, dispostas como numa sala de treinamento. Nelas os membros, de mãos juntas, oravam, com os olhos ora na sutra de Lótus que tinham em mãos, ora no Btsudan, espécie de grande móvel de madeira, quase uma estante compacta, que continha uma portinha aberta. Dentro da portinha, viu-se uma folha de papel tamanho A4, contendo uns dizeres incompreensíveis.
Para Fiorini, que estava conhecendo o budismo pela primeira vez, não foi menos incompreensível o som a uma só voz, feito pelos membros. Som esquisito. Mas é tradição recitar a sutra em sânscrito.
A língua estrangeira imperou por cerca de meia hora, depois do que se seguia a reunião propriamente, em português. Thereza se sentiu como se acabasse de retornar ao Brasil.
A estrutura da reunião traduz-se por flexibilidade.
Primeiro, um membro apresenta seu relato de experiência. Em seguida, um dos dirigentes toma o centro das atenções. Não, nem por um momento ele pensa em centralizar em sua pessoa o dom da palavra. Exerce mais o papel de orientador em frente às pessoas sentadas em cadeiras dispostas a formar um meio círculo. Estimula cada membro a expor a própria opinião face ao relato apresentado.
Nesse meio tempo, podem surgir atividades extras. Recitar uma canção ou ensaiar apresentação teatral de membros mais desenvoltos. Uma parada no tom de palestra, para trabalhar o lúdico no grupo. Na sequência, retomasse a leitura e reflexão matéria impressa no jornal Brasil Seikyo.
O conteúdo da discussão satisfaz as dúvidas dos calados, ou menos acostumados a falar. Como o processo é dinâmico, obviamente novas dúvidas pipocam. É a dialética da discussão que fomenta a aprendizagem.
Fiorini havia se identificado.
Lúcia emprestou para a amiga o primeiro volume da Revolução Humana, escrita pelo presidente da SGI, sr. Daisaku Ikeda. Quinze dias seriam suficientes para Fiorini completar a leitura.
Dos demais volumes da coleção, ela leria mais três.
Passou a assinar o jornal e a revista Terceira Civilização. Ambos completavam, a cada edição, o aprendizado gradual da filosofia e prática da religião budista de Nitiren Daishonin.
O namorado, Vicente Vergueiro, estudante de Contabilidade, quando comparecia às reuniões budistas, fazia-o apenas para agradar a amada. Não se identificava com religião. Era católico só de batismo.
Namoravam há alguns meses. Seria o primeiro relacionamento sério de Thereza.
Virou casamento. Até novembro de 1978, estariam unidos pelos laços matrimoniais. A filha única, Diana Fiorini, viria um ano mais tarde.
A nova família que se forma teria a essência budista. Pelo menos no que dependesse da mãe e da filha.
Casado, Vicente faria questão de acompanhar a esposa ao templo ou às reuniões nas residências. Ajudaria na aquisição do oratório, além de incentivar a filhinha nos contatos iniciais com a religião de dona Thereza. Chegou mesmo a praticar a fé, orando durante uns trinta minutos por dia, ao lado da mulher, antes de ir para a cama. Também cultivou o hábito de rezar quando ia e chegava do serviço.
Doce começo de casamento.
Um dia, Vicente desanimou. Para não magoar a esposa, alegou preocupação com o trabalho. Não colou. Viver a dois é isso. Cada um necessita conservar a privacidade, mínima que seja. Não há nada pior que forçar o cônjuge a fazer algo que o desagrade. Deve haver uma disposição voluntária para aceitar o convite que se oferta.
Já a filha pegou firme na prática.
Fim de semana era sagrado para a garota se debruçar sobre as práticas budistas no Kaikan. Saía de casa às sete horas da manhã. Os incômodos vinham mais dos pais do que da filha. A preguiça esporádica dos adultos é que atrapalhava a obstinação da criança.
Diana, nascida em berço budista, teria laço mais firme com a religião do que os pais que ali aportaram marmanjos, calejados por ceticismo, desilusões, algumas irreversíveis. Estava pronta a abraçar uma prática de coração aberto.
Numa religião os participantes acabam comungando crenças definidas em relação a questões tais como por que se existe, de onde se vem e para onde se vai após a morte.
O agrupamento religioso difere do escolar, familiar e do emprego. Não que seja mais autêntico. Há, porém, tendência para maior comprometimento entre as pessoas para se respeitarem. Há maior esforço para compreensão mútua. O espírito abre a guarda. Esquecem-se as nocivas práticas e desconfianças que marcam atitudes e pensamentos das pessoas.
A garota entende a magia, mesmo que de um ponto de vista mais próprio à sua idade. Em sua opinião, é bem mais agradável que colônia de férias.
A turma da religião é mais calorosa. Sempre disposta a perdoar as falhas do outro. Os conselhos expressam a sincera amizade, em vez de mera e mesquinha repreensão. A pessoa que tem sua atenção chamada percebe o interesse genuíno para que ela evolua, transcenda seus pontos fracos. O fim almejado é a harmonia com o grupo.
Diana curtia os amigos, as brincadeiras, os ensaios musicais. No meio do grupo budista, as rusgas eventuais eram tão diferentes do colégio. Era muito mais gratificante. Fazia refletir sobre o deslize. Nada de ficar magoada quando levava esculacho, servia para amadurecer.
A fase do pompontai ia se extinguindo e com ela as atividades a que se habituara na meninice.
Havia, agora, mais introspecção, menos diversão, mais compromisso religioso.
Entrava na fase da adolescência.
Tinha início a fase de encarar a religião do ponto de vista mais maduro. Resfriaria a o uso de brincadeiras, ao passo que liberavam a abundante inquietação do jovem.
As colegas do Kotekitai, nome dado para a divisão das moças, em sua maioria chegaram juntas da divisão infantil.
Eram recepcionadas pelas veteranas, moças que enquanto não se casassem permaneceria na divisão. Casando-se, passavam para a divisão das senhoras.
A entrada no kotekitai só lhe deu prazer.
Tinha as amigas confidentes, os adultos compreensíveis, as senhoras sorridentes.
De vez em quando, um mal-entendido pipocava. Uma discussãozinha com a responsável de comunidade, de bloco ou com colega da divisão a que pertencia.
“O budismo”, dizia um dos mestres “também é palco para a exposição dos sentimentos mais genuinamente humanos. Se ali se desenvolvem as melhores provas de amizades e companheirismo, o lado mesquinho em momento algum é impedido de vir à tona”.
Com o tempo, Diana passou a perceber que se o lado mesquinho é evidenciado, o verdadeiro budista toma isso como desafio. Munido de muito daimoku, paciência e carisma, tenta-se trazer a lucidez ao espírito desviante.
A certa altura Diana começou a perceber que quem mais oferece resistência à iluminação do budista é ele mesmo.
_ “Fácil é dar conselho, dizer que é certo e errado”, dizia a um chakubuku, “mas quando aquele que dá os conselhos vê apontados seus defeitos, muda de postura! O verdadeiro budista se destaca, como todo homem que pratica uma fé sincera e não oportunista. Consegue enxergar as próprias falhas. Na medida do possível, com muito desafio, busca a transformação de si mesmo”.
A moça acredita que essa a base que uma religião deve conter e disseminar. Que melhor benefício para o kossen-rufo, para a paz mundial, que a paz dentro de seus próprios adeptos?
Diana Fiorini cresceu.
Tornou-se uma bela criatura. Encantava a todos. Destaque para os homens: dos mais velhos aos jovens que acabaram de chegar à idade da razão.
Aos dezessete anos, prestou vestibular para Medicina.
Entrou.
Diana levava existência de filha de classe média alta. Com seu carro, adquirido logo que tirou a CNH, aos dezoito anos. Com suas viagens ao exterior para aperfeiçoar o inglês. Com seus passeios ao litoral do Brasil, de norte a sul, para pegar bronzeado e conhecer gente diferente, fazer amizades.
Passeios e viagens, só em período de férias. Para uma pessoa dedicada, seria como cometer falta grave se fugisse das aulas para curtir as delícias proporcionadas pelo turismo.
Para Diana Fiorini, os compêndios de Medicina, as aulas teóricas, as aulas em laboratório, representavam também encantos inenarráveis.
Na opinião dos parentes, o futuro reservava para a pequena Diana a sequência presumível: concluir a formação acadêmica, achar rapagão do interesse, talvez médico, casar-se, ter filhos e clinicar.
Um incidente viria a perturbar essa esperada sequência.
_ “A vida não seria um incidente?” Um colega que perturbava a ideia budista de escola da existência, certo dia indagou perto de Diana. “De repente, nascemos no Brasil, no seio de certa família. Crescemos. Vem o amor nos relacionamentos. Geramos e criamos os novos seres. Morremos. Anos mais à frente, quem se lembra de nós? Mesmo os ídolos são esquecidos debaixo da terra. Nesse meio tempo, durante nossa existência, acontecem mais coisas imprevisíveis do que esperávamos ou desejávamos”.
Embora se mantivesse quieta, Diana tinha convicção em sua fé, dando-se ao luxo de evitar embate.
“Um delírio? Na verdade, tudo tem sua lógica, e já está certo, definido?” continuava o amigo de classe no segundo ano de medicina a filosofar, “vai ver seja a vida o maior dos delírios. Quem sabe o delírio supremo venha na forma da morte: que em si pode levar ao nada absoluto ou a outra existência diferente ou semelhante à que vivenciamos”.

O incidente na vida de Diana viria por causa de Armindo de Souza.
O homem casado e cobiçador de mulheres.
Embora o adjetivo cobiçador seja passível de questionamento, visto que esta pessoa, ainda que mantenha a pose de conquistadora, de poderosa, possa não passar de mero fantoche, a satisfazer aos que cruzam seu caminho, menos a si mesmo, ainda assim tem capacidade para causar sofrimento a uma pessoa que tenha recebido valores morais menos mundanos como é o caso de Diana.

Bela manhã de outono. Ideal para quem aprecia manhãs ensolaradas e frescas. Última sexta-feira do mês de abril de 1999. Que o leitor não se aborreça em visitar a faculdade de Medicina.
A cidade é Ribeirão Preto, situada no interior paulista. O nome soa familiar para quem assistiu a novela “O Rei do Gado”. Ribeirão Preto é a oitava maior cidade do Estado de São Paulo.
A faculdade pertence à Universidade Estadual Paulista Carvalho Pinto, a UEP. A fim de evitar confusão, é bom avisar que Ribeirão Preto se destaca por possuir não somente uma, mas duas faculdades de Medicina. A USP igualmente oferece o curso.
Ribeirão Preto é terra natal de Maurício Martinelli, pintor que a cada ano vem ganhando projeção no cenário internacional. Ela, a cidade, não tem o que reclamar. Numa exposição em Milão, realizada em outubro de 1998, três de suas telas escancaravam na fachada o oculto, o grotesco e o deslumbrante que Ribeirão exibe aos olhos do povo.
Para a prefeitura e os novos ricos, que raro captam a sutileza da crítica da arte, foi uma festa, motivo de orgulho.
Ufanismo à parte, meses depois a cidade passou a receber artistas de todos os cantos. Queriam conferir a magia e o bizarro que formaram a consciência artística do jovem pintor talentoso.
Com essa ficha, ninguém melhor que Maurício Martinelli para comentar a cidade.
“Ribeirão é muito interessante. Curto muito. Boiadeiro, fazendeiro, empresário, professores, doutores, artistas, malandros, todos têm lugar ao sol. Para mim, a galera da faculdade, após receber hospitalidade diferenciada, ergue as mãos para o céu e aproveita as regalias que a condição de estudante universitário permite. Entre os mais entusiasmados, há quem afirme que não existe lugar onde o universitário tenha tanto prestígio. Contudo, rodei Campinas, Bauru, Marília e a capital. Fiz a comparação. Acho que a hospitalidade é coisa mesmo do interior. O interior paulista é o melhor lugar para se estudar. Mas para se dar bem na carreira deve-se manter pé fincado lá na capital.”
A cidade já nos sorriu.
Agora é prosseguir o caminho para a faculdade de Medicina.
Fique despreocupado. Ao entrar na sala de anatomia, será poupado do fétido ar. É a vantagem da viagem pelas letras. Formol, o hálito dos cadáveres, os aspectos esquartejados e dissecados, e a umidade reinante na sala de laboratório não o incomodarão.
Menos de quarenta alunos, três auxiliares e o professor compõem o contingente dos vivos.
Nas enormes prateleiras, há recipientes de vários tamanhos nos quais se encontram depositados restos cadavéricos de animais diversos. A sala serve aos cursos de Medicina Veterinária e Ciências Biológicas, além do de Medicina, razão para haver outros destroços que não unicamente humanos.
Estando os alunos no terceiro ano, situação que os coloca na qualidade de veteranos, os deslumbramentos naturais de calouros e leigos cedem espaço a uma análise mais objetiva.
Hoje é difícil apontar, entre eles, alguém perplexo face ao cadáver. Nem as raras, mas preciosas, palavras do professor causam admiração. Pudera. Os alunos, teoricamente, já as digeriram.
Não que os veteranos sejam indiferentes, que nenhuma motivação os nutra durante as aulas. Têm sim. Mas é motivação silenciosa, maquinal, que nunca os abandona, pois raramente os que chegam à condição de terceiranista largam o curso. Nessa altura, têm noção do lugar onde estão. O deslumbramento está internalizado, comedido. A taxa de maior desistência está entre os calouros.
A explicação é razoável para o comportamento da maioria, exceto para Diana. Aparentemente compenetrada, conservava os penetrantes olhos negros fixados ora nos gestos ora no rosto da professora, que, volta e meia, solicita aos alunos prestar atenção na identificação de figura no valoroso livro que tem à mão.
Sem ânimo, a menina executa o que a profa. Dra. Matilde Sampaio ordena.
Pena que a atenção deve se dirigir à pessoa de Diana que se mostra sem brilho, no meio de tantas simpatias animadoras. Que fazer? É a protagonista.
O que resta de consolo é saber que Diana, no seu normal, é prazerosa, divertida e otimista.
Algo de muito sério a preocupa.
O negócio é realçar os traços físicos, que primam por encanto genuíno.
Cabelos Chanel, escuros, lisos, casando bem com o rosto um tanto oval. Com 1,62 m de estatura. Pele bronzeada. Bronzeado próprio do interior de São Paulo, dos que visitam piscinas nos fins de semana ou vão ao litoral esporadicamente. Testa pequena, rosto de quem não sofre nem com os excessos de chuva ou sol, nem com montanhas de incômodas espinhas.
Comparada àquela quando entrou na faculdade, a fisionomia começa a adquirir envergadura de sedentários, dos que passam muito tempo sentados e não têm cardápio de exercícios como atleta ou adepto de bom condicionamento físico.
Não se trata de negligenciar as dietas, comuns a boa parte das mulheres zelosas, ou evitar visitas à academia de ginástica.
Diana, inclusive, pedala durante uma hora todos os dias em sua bicicleta ergométrica que faz parte do mobiliário do quarto. Porém, como o hábito faz o monge, o corpo e a mente acabam se moldando à carreira profissional escolhida.
Mantém traços atrativos. A curvatura inclinada para frente que o corpo descreve quando caminha. A sua magreza esbelta. Consegue encantar corações masculinos de todas as idades sem esforço.
Sentada na fileira da direita, enfiada no uniforme branco, completando o vestuário com o guarda-pó que usa nas aulas de anatomia.
Apesar dos olhos grudados na professora, o pensamento está a quilômetros de distância. Se a atenção da aluna não está nos brilhantes conteúdos acadêmicos apresentados, bom investigar qual o seu paradeiro.
O que ocupa sua mente? A resposta é esquisita. A aula de ontem à tarde, a de Fisiologia, é que causa nostalgia.
Para deixar de suspense, é bom esclarecer que nem de longe era o conteúdo fisiológico que fazia o coração bater mais forte, ainda que pareça paradoxal. Apenas a presença do mestre. Vai mais além do que admiração. Supera a condição de amor platônico.
Ontem havia sido o ápice do paquera. O dia em que o professor enxergou a oportunidade de desfechar o golpe previsto pelas toneladas de conversa fiada que o conquistador regou por semanas.
Era o convite para saírem sozinhos.
Ela aceitou.
Foram ao shopping.
Da parte dela, sabia que tinha habilidades suficientes para atrair um homem. Experimentou a companhia de três ou quatro namorados. As paqueras eram a perder de vista. Uma típica jovem da era ficante. Em hipótese alguma Diana Fiorini é vulgar, só fruto da época do descartável. Aliás, é até considerada tímida para sua geração. Não era mais virgem há um ano e meio.
Apesar do currículo vital amoroso, ficou impressionada, um pouco sem graça. Hesitou em atender ao pedido. Pensou em recuar.
Que empecilho poderia haver se os atributos físicos do professor caíam como luva no agrado da aluna? Admirava os olhos verdes, a barba espessa, o corte de cabelo atraente, embora fora de moda. Venerava e mesmo incentivava os discursos, as filosofadas do mestre durante as aulas.
Quem, dentre os aplicados alunos, mais perguntava ou comentava sobre o conteúdo? Ela. E nem aí para quem torcia o nariz sacando a paquera aluna-professor. Diana gostava de se inteirar. Um tanto pela disciplina, que seria importante para sua futura especialização. Mas muito por causa do professor.
Se há dois meses alguém dissesse que as aulas de fisiologia arrancariam tanto interesse de sua parte, ela desacreditaria.
O mestre, em sua opinião, era simplesmente dez.
Tarefa supercomplicada apontar nele algo que a desagradasse. Nada que estivesse evidente. Todas as atitudes eram objeto de carinhoso registro. Sentar-se, manter-se em pé, ficar de costas para a turma, escrevinhar na lousa, encarar os alunos. Até gesticular como louco, na tentativa de melhor fixar a matéria em suas cabeças, arrancava boa impressão. E o tom de voz? Demais, demais, demais.
Diante das condições atrativas, o receio ainda teimava. Razões objetivas não faltavam para que Diana temesse se entregar.
A mais grave: o sujeito era casado.
Ele jamais escondeu o estado civil. A grossa aliança dourada e imponente no dedo não deixava dúvida. Tocava no nome da esposa, inclusive, com insistência mais do que recomendada para um garanhão. Pintava-a em tons suaves. Diana podia jurar que foram onze vezes.
Admitindo que Diana tenha escrúpulos, que nunca se viu envolvida na condição de amante, de ladra de marido, mas que se incomodasse contra a forte atração, é certo que esteja com desespero interior.
E está.
Há mais de um mês, sofre para valer em meio ao fogo cerrado entre a consciência e o coração.
A consciência abomina a relação. “Tanto homem solteiro dando sopa por aí e fui me apeguei justamente a um casado, e mulherengo”, critica-se.
Se quisesse, nem precisava ir tão longe. O campus da UEP é um formigueiro. Até pouco tempo, namorava firme com um estudante de Veterinária. Mesmo que o sujeito saiu fora, não faltaria novo pretendente. Mas não, teve que encanar com o mestre casado.
Percebeu que algo mais sério movia sua admiração. Tentou desistir da ideia. Criar para si justificativas para se esquivar. Não queria encrenca.
O coração acatou as ordens da consciência? Nada. Até a criticou: “Quem é essa mocreia para me dar ordem?”
Para provocar a rival, perturbando a cabecinha de Diana, o coração aprontava das suas. Volta e meia desvendava mais um belo atributo, qualidade ainda não prestigiada. Tadinha da garota. Prostrava-se. Desarmada, entregou-se de corpo e alma à contemplação silenciosa.
O professor, que não é bobo, percebeu o lance. Antes de ela desconfiar, o mestre havia percebido a situação. “Mais uma presa”, gritou-lhe o instinto.
Se fosse uma pessoa séria, professor consciente de seu papel, desconversaria, gelando os desejos da jovem para o próprio bem dela.
Pena que o sujeito costuma ensinar a suas alunas algo mais que a disciplina acadêmica. Deseja ser mestre no amor. Nada de paixão. Quer o prazer de desfrutar o corpo, o corpo juvenil, nem sempre virgem e inocente, mas que agrade aos olhos e ao seu paladar masculino.
Armindo de Souza é o nome do mestre. Casado e pai de três filhos. Jamais hesita em levar mais uma universitária para cama. Armindo é o autêntico abutre, carregando jovens para o covil da desilusão.
Uma situação, por mais batida que possa parecer aos olhos da maioria, é única para a pessoa que a experimenta pela primeira vez. Muitos aprendem somente com o sofrimento da queda, em vez de seguir os conselhos que alertam para o buraco no meio do caminho.
Torna-se, neste caso, difícil evitar devaneios, cabeçadas.
Ela deveria viver aquela experiência. De nada adiantariam os gritos da consciência para que abandonasse a teimosa ideia. Não podia evitar o terrível choque. Algo a arrastava para junto dele, queria-o com ardor.
Inteligente e aplicada em tudo o que fazia e que exigia raciocínio rápido, sabia que estava indo para um abismo. Ainda assim levava fé, mesmo que inconsciente, que o futuro amante poderia gostar dela o suficiente, a ponto de abandonar a esposa para viverem juntos.
Que tolice! Sabia que era tolice. Porém, queria acreditar em algo racional. Tinha que acreditar. Não sendo leviana, nem sendo esta a sua primeira experiência do gênero, precisava orientar a cabeça para não pirar. Do contrário, desistiria no meio do caminho daquele caso que a consciência classificava como inconveniente.
Ignorando a prudência que apontava os contras da futura relação, aceitou o convite do mestre na quarta-feira passada para irem ao Shopping. Também pudera, o convite veio tão inesperado. Mal deu tempo de raciocinar.
Estavam no refeitório da faculdade na hora do almoço. O tumulto infernal e rotineiro no restaurante universitário. Uma hora da tarde, tinha que entrar na aula de Farmacologia.
Ele chegou como quem não quer nada.
Sentou-se à mesa que ela, três colegas e mais dois rapazes ocupavam.
Por coincidência, os cinco, que estavam antes de Diana sentar-se para comer, resolveram sair. Haviam terminado a refeição e tinham consciência de que o local tinha muita gente na fila de espera.
O restaurante estava superlotado.
Minutos mais tarde, o professor arremessou:
_ Você gosta de passear no shopping?
_ Gosto... – falou meio sem jeito.
_ É que preciso comprar algumas coisas. Como você é de Ribeirão, pensei se aceitaria ir comigo... Quem sabe indicar algumas lojas.
_ Tudo bem... Dependendo do dia. É que é tão corrido durante a semana. E ultimamente tenho tirado o fim de semana para passar a limpo as matérias que sinto dificuldade.
_ Amanhã, à noite? Sua turma não terá aula à tarde e na parte da manhã é um crédito só. Aceita?
_ Sim.
A resposta saiu por acidente, foi de supetão. Quando se deu conta, tinha aceitado o convite e não ficaria legal voltar atrás. Afinal, que mal haveria em um aluno acompanhar o professor nas compras? Nenhum.
Foram.
Diana sentia esquisito ir a um shopping no meio da semana. Se ainda estivesse num feriado. Parecia deserto. Faltava gente, clientes, flanador, como diz a tia arquiteta. Nas lojas, lanchonetes, cinemas, eventuais parquinhos para as crianças, nas sorveterias, nos toaletes, todos bem preparados, raras são as almas consumindo.
As lojistas, os gerentes proseando com fornecedores.
O patrão ausente.
O vendedor de pé. Uns plantados no meio da loja vazia. Outros irrequietos, mexendo as pernas para não dar cãibras. Com ou sem o que fazer, deve cumprir o horário. Sorte que a maioria é da juventude tagarela e divertida. Para eles, o tempo voa. São moças bem pintadas, arrumadas ou rapazes bem animados. Todos muito perfumados e sorridentes. Se bem que o sorriso fica mais realçado diante da presença do cliente.
Mas faltava no local o tempero do corre-corre frenético dos clientes. Compradores impulsivos ou moderados. Caçadores de oferta. E aqueles que gastam horas namorando os produtos da loja e que acabam consumindo apenas a paciência do vendedor.
Por que ela está reclamando do vazio? Devia agradecer. Ao menos, evita esbarrar-se com alguém da antiga galera. Balançou a cabeça, afastando o pensamento. Sabia que boa parte havia saído de Ribeirão Preto para estudar nalguma faculdade por perto ou até fora do país.
Lembra-se do dilema que pairou no ar, quando do tempo de sua escolha.
Pensou em sair de Ribeirão Preto. Temia que não conseguisse entrar nos bons cursos que sua cidade oferece. USP e UEP metem medo em qualquer candidato, por mais que se julgue preparado. Alegrou quando conseguiu a vaga. Ufa! Não precisava migrar para canto desconhecido.
Foi uma exceção entre as amigas. Teve gente que, mesmo passando na USP, preferia estudar Medicina na UNESP em Botucatu, só pelo prazer de escapulir de casa, aventurar-se.
Constatou que o professor estava falando a verdade. O sujeito entrou numas lojas. Na Saraiva, desembolsou uns R$ 300,00. Livro de Medicina custa o olho da cara. Na Power Hit, carregou o CD de Chopin.
_ Gosta do Chopin? – Diana perguntou.
_ Sim, por quê? Você curte?
_ Eu, mais ou menos. Meu pai o adora.
_ Ótimo. Já temos mais alguma coisa em comum.
Ela não entendeu o que a frase dele queria dizer. Nem deu tempo para refletir. Dali a minutos estavam na lanchonete discreta e aconchegante. Saboreavam uns deliciosos nuggets de frangos, a pedido dele, claro.
Diana apreciava o que podia à sua frente, à medida que comia. Quem a visse jamais diria que há menos de seis anos vinha com regularidade ao Shopping. Tudo levava a crer que estava sonhando.
E estava.
Acordou quando levou um ardente beijo, dentro do carro, ainda no estacionamento.
_ Mas você é casado... Isso não está direito, não acha? – a voz de Diana vinha entrecortada pela irritante hesitação, comum em quem sabe que está cometendo erro.
Ele nem disse que sim nem que não. Calou-se.
Não era bem arrependimento. Estava sem jeito. Ouvira esta frase um par de vezes, nas mais diversas circunstâncias. Toda vez soava original. Seu espanto não era hipocrisia. É que parecia que ele só se dava conta da falta grave quando a frase era ouvida.
O som entrava rasgando o tímpano.
Passados os instantes nos quais se perdia no devaneio, uma força o fazia voltar a visualizar o corpo ao seu lado. O olhar despertava o formigamento interior que o levava a pôr de lado qualquer sentimento de culpa.
E aí?
As frases, os gestos, as mímicas. A face constrita. O sorriso meio amarelado. Claro, sem deixar de lado as abundantes mentiras. A personificação do conquistador vinha à tona.
Checava o tipo de máscara, de expressões faciais, de papel, de papo que deveria usar diante da presa que estivesse à sua frente. Toda mulher tem em mente um tipo de homem ideal, e Armindo se esforçava para contemplá-las nesse particular.
Muito do homem ideal, pensa ele, costuma vir implícito no nível intelectual da própria mulher. Bastava ao médico observar sua presa para ver que atitude tomar. Para umas, o tipo despojado, o irônico, era suficiente. Para outras, chegava ao extremo de se passar por homem gentil, sofisticado, cavalheiro.
Não pense a leitora que o doutor nasceu versado no assunto. Tudo que sabe a respeito da mulher, captou do contato com as próprias. Não, tampouco elas lhe deram aulas teóricas. Aprendeu sobre o universo feminino vendo-o sonhar, chorar, amar, odiar, desejar.
Óbvio que sua sensibilidade ajudava.
Encaixou-se numa máscara que julgou apropriada para encarar Diana. E procurou responder a pergunta:
“Sou casado... sim, sou casado”, começa confirmando. “Você deve saber que eu tenho três filhos”, e como Diana respondeu negativamente, “pois tenho. E é só por eles...”, deu aquela pausa, em seguida: “Você é jovem... e ainda despreocupada com a vida. Não sabe o quanto é difícil viver ao lado duma pessoa apenas pelos filhos. Não que ela seja má pessoa, pois não é. Parece um anjo. O problema é comigo, só pode ser. Eu não me satisfaço com a presença dela”.
Num certo momento, mudava de assunto. Era hora de descrever o que ele achou de original na pessoa que tem diante de si. O terreno da conquista propriamente.
O que me deixa confuso é que as palavras eram simplórias. Cheiravam a mesmice. Mesmo assim conseguiam envolver a pessoa. Como acontecia às demais, Diana se viu atolada na atração movediça. O doutor sabia manejar a situação, adocicando-a, tornando-a irresistível.
As mulheres têm suas armas para atrair os homens, destaque para a atração física. Cabe ao macho a força ou a lábia. Na nossa democrática sociedade, a lábia é hipervalorizada, uma vez que a força física teve seu apogeu na época dos primatas e dos bárbaros.
Armindo está em sintonia com o seu tempo quando o assunto é usar a lábia, porém, afronta a sociedade quando exagera no uso, pois a monogamia é exigida aos casados. O médico comete odioso expediente ao cutucar a libido das mulheres. Sendo homem casado e pai de família, devia portar-se diferente.
O professor jamais as enganava. Não escondia o casamento, os filhos, e que dormia todas as noites na cama com a esposa. Pior. Não pretendia se separar.
Diana insistiu. Queria porque queria ir para casa.
_ Me desculpa. Não queria abusar. É que... é que estou gostando de você. Talvez nunca me perdoe por isso, mas...
_ Esquece – Diana falou meio trêmula.
Estava tensa, nervosa. No íntimo, gostou da iniciativa, do beijo. Mas havia o lado prático: o cara era casado e tinha uns vinte anos a mais.
_ Preciso ir embora. Por aqui deve ter algum ponto de ônibus? – mirando pela janela do carro, aparentou interesse em achar um.
_ Nem pensar. Faço questão de te levar.
_ Não precisa se incomodar.
_ Não é incômodo.
Diana permanecia num impasse. Queria sair dali, mas evitava magoá-lo. Queria ficar sozinha. Refrescar a cuca. Avaliar o que estava acontecendo. Era tudo o que necessitava no momento.
_ Eu te amo. Quer ser... minha? Quer me dar o prazer de estar novamente com você?
_ Preciso ir embora agora.
_ Não está zangada?
_ Claro que não. Por que deveria?
_ Talvez meu beijo a irritou. Me desculpe.
_ Mais uma vez, esquece – falou num tom mais elevado.
O professor virou a chave na ignição. O veículo, lento, deslizava para fora do estacionamento.
Minutos depois, estavam chegando a uma praça, no bairro onde Diana residia com a família. A estudante disse seu endereço, após o mestre perguntar qual era a sua casa.
“Esquece isso”, gritou a sua consciência de volta à aula no laboratório de Anatomia. Tinha que espantar as lembranças de ontem. Mas não conseguia. Impossível se concentrar na aula.
A professora deu um intervalo de dez minutos para a turma.
Voltando à sala, Diana executaria as tarefas, como estudante responsável e dedicada que era.
Na hora do almoço, desistiu de ir para casa. Almoçaria na faculdade. Pouco importa que para a aula à tarde faltem duas horas. Sendo dez minutos para uma hora, aula só às 3h, indo até às 6h. Era um único crédito.
Pouco depois de encerrar a refeição, lembrou-se da prima. Escovaria os dentes e em seguida telefonaria.
Num dos dois telefones públicos da cantina, ela completava a ligação para Rafaela Fiorini.
_ Você quase não me acha em casa. Estou de saída.
_ Ahn...
_ Vou dar palestra numa escola. É na segunda aula... Começa às 14 horas. Mas o que te levou a me ligar? Aliás, faz um tempão que a gente não se fala.
_ O terceiro ano é muito puxado. A gente quase não tem tempo de respirar... E das vezes que ligo, cai na secretária.
_ Também está corrido pro meu lado. De manhã, cuido do bebê. À tarde e à noite, estou na clínica, realizando palestra ou fazendo atendimento em escola.
_ Tem sorte... Não vejo a hora de estar nesse ritmo. Até a residência será muito melhor do que ficar enfiada na faculdade, vendo teoria.
_ Calma que a prática vai chegar. Aí, como sempre, verá como uma teoria bem digerida fará a diferença – Rafaela procurou animar a amiga.
_ Precisava tanto falar contigo.
_ Aconteceu alguma coisa?
_ Mais ou menos... Precisava de um papo.
_ Faz isto... Hoje é sexta-feira. Meu marido está na hidrelétrica de Itaipu. Podemos jantar juntas. Uma pizza.
_ Pra mim está ótimo.
_ Combinado. Ligo por volta das sete, confirmando local e hora. Nem precisa se preocupar, eu passo para te apanhar.
_ Te espero.
Diana assistia ao último dia de aula da semana, com o estampado desânimo. Junto dos colegas, pouco compartilhava da euforia que muitos sentem toda sexta-feira.
É dia de viajar, para a maioria. Rever os parentes e amigos na cidade de origem. Pela condição de ser natural de Ribeirão, Diana estava distante da agitação, da empolgação dos que se consideram longe do ninho.
Caminhou para o ponto de ônibus. Droga! Além de tudo, ficar sem carro. Motorista que se preza, habituado ao uso diário do veículo, descontenta-se em seguir de um canto para outro de ônibus.
Há cinco dias que o carro tinha apresentado problemas no motor, e ido parar no mecânico. O sujeito disse que em três dias estaria pronto. Cinco dias, e nada de carro pronto.
Em casa, tomou banho. Comeu sanduíche de pão de forma com patê.
Não queria jantar. Guardaria o apetite para a pizza que a prima Fiorini havia prometido.
Se bem que estivesse longe das dezenove horas, aguardava o telefonema com impaciência. Para diminuir a ansiedade, pensou em adiantar algum trabalho acadêmico. Procurou ler uma apostila.
Caiu no sofá. O corpo molhado envolto num robe. O roupão camuflava as peças íntimas.
Estava solitária.
O pai, Sr. Vicente Vergueiro, na faculdade. Provavelmente fazendo horas extras. Não que o Estado exigisse tanta dedicação ou sequer fosse pagar qualquer coisa a mais. A dedicação à profissão de contador é que o motivava. Um dos mais dedicados funcionários públicos. Não é ela, a filha, quem o diz. Os colegas de repartição são que confirmam essa qualidade (ou defeito, na opinião de outros.)
A mãe, Sra. Thereza Fiorini, na direção da escola de ensino fundamental e médio. Ocupa o cargo de diretora. Posição que almejou durante anos. Há razão para, após um mês da nomeação, continuar estendendo o quanto pode o tempo de permanência no recinto escolar. Quer saborear a conquista.
Ora, por que se preocupava com os pais? Curtia e tinha muito orgulho pelo modo como cada um se realizara na profissão. Havia nela admiração por ter nascido no seio de família batalhadora.
Amava-os.
O problema era consigo. O professor, o passeio, o Shopping. A grossa aliança pesando na mão dele. E o beijo? O beijo era um caso sério, seriíssimo.
A mão que segura os papéis pende para o lado. A apostila caía no chão. O ânimo havia desaparecido. Sequer se concentrava nas letras. Os olhos fechados buscam o mestre. O receio ia vencendo o pasmo. Contaria ou não para a prima o que rolou?
Despertou do torpor, graças ao zunido do telefone.
_ Alô, Diana...
_ Oi...
_ Pronta?
_ Sim... Isto é, mais ou menos... Tomei banho. Só pôr umas roupas e ok.
_ Mais meia hora e estou aí.
_ Te espero.
Corre para o quarto.
No guarda-roupa, viu o vestidinho que faz as meninas passarem a noite toda o esticando, puxando-o para baixo, movidas por esquisito sentimento de vergonha. De nada adianta, porque o teimoso pano volta ao ponto de origem. Muitos homens e mulheres cansaram de sugerir que troquem o infeliz por outro menos justo, menos curto. A maioria nem dá ouvidos. Diana é uma das exceções. Percebendo que na balança entre prazer e desconforto, ganhava o segundo, abandonou a moda.
Havia roupa mais confortável, sem ser menos sensual.
Calça Pantalona de seda bege. Dois bolsos embutidos. Blusa. Sandálias pretas, com tiras enlaçando a altura do tornozelo. Era a armadura para a noite. Vestida, correu para o espaçoso banheiro. Deu uma escovada no cabelo, deixando solto.
Antes de abrir a porta e sair, escreveu bilhete. Bom filho costuma avisar aos pais onde está.

Fui a um restaurante com a Rafaela. Vamos saborear pizza, distrair a cabeça. Vou ligar por volta das dez. Se vocês quiserem uma, eu trago.
Um beijão de sua filha,
Di.

Para sexta-feira à noite que não é nem antecede qualquer data comemorativa, a agitação está perigosa. Aliás, traço das sextas-feiras rio-pretenses, mesmo as chuvosas. Carros e mais carros nas avenidas. Gente animada circulando, à procura de diversão. Gente batalhadora, contente com a expectativa de chegar ao lar doce lar, e descansar após o dia exaustivo.
A ideia de visitar a pizzaria ficou para a próxima. Rafaela sugere dar um pulo no Pinguim. Era só para ver o movimento. Mas o movimento as cativou. Decidiram montar acampamento.
Penaram para obter vaga para estacionar.
A impressão que se tinha era que havia mais carro do que gente. Circular nas imediações da Choperia era aquela dificuldade. A rapaziada e seus carros abertos, sons nas alturas, infestando a via pública. Os veículos transitavam a custo, lentos. Se quem namorava vaga para estacionar e curtir a noite estava de saco cheio, imagina como se sentia o infeliz que devia transitar ali por ser a única via de acesso à sua casa ou ao serviço.
Adentraram o Pinguim, e de repente vozes frustraram o desejo de privacidade de ambas.
Diana ouvia seu nome em alto e bom som. Galera da faculdade. Três meninas e quatro rapazes estavam em torno dum mesão.
Ela sorriu.
Rafaela, de sua parte, captou tons mais comedidos. Vinham de quatro pessoas. Gente do CRP, o Conselho Regional de Psicologia.
Além de dedicar-se à carreira, Rafaela encontra energia para colaborar com o órgão que representa sua categoria profissional. Desde março de 1997, passou a figurar como membro do conselho. Não a ponto de viajar em campanha, engrossando a comissão externa. Limita-se a reforçar a divulgação e execução de atividades que o CRP oferece aos associados de Ribeirão e adjacências.
Minutos depois, junto ao mesão composto de duas mesas, acrescentavam mais duas. Estudantes de Medicina e psicólogos. Graças ao prestígio tanto de Diana quanto de Rafaela, as duas panelinhas, com divergências históricas, bebiam e proseavam numa boa.
A diversidade não se limitava a estas duas categorias. Havia profissionais e universitários de várias áreas. De estudantes calouros a aposentados, todos tinham vez. Como dito, Ribeirão Preto, aos olhos de alguns, é uma preciosidade, paraíso para a fatia da população diplomada.
O Pinguim seria um dos locais de recreação que esta fatia conserva o hábito de frequentar.
O papo rolava empolgado.
Tanto que só uma hora depois a prima sacou o distanciamento de Fiorini. Rafaela animada, mas sensível, percebeu que Diana estava meio deslocada. Conhecendo bem a prima, desconfiou que o que quer que fosse que a preocupava devia ser muito complicado. Lembrou o telefonema à hora do almoço, da apreensão dissimulada que a voz da universitária emitia.
Convidou Rafaela para ir ao toalete.
Àquela altura, os amigos, de ambos os lados, haviam rompido o natural receio do primeiro encontro. Uns tagarelavam como fazem os teóricos de bar, outros tamborilavam com os dedos na mesa, movidos pelo som do grupo Cidade Negra, flor do reggae brasileiro de uns tempos para cá. Estava tão incrementado o papo que nem se deram conta da demora das primas.
Se no meio do salão a agitação era escancarada, no toalete feminino o movimento não era menos agitado. A começar pela entrada. Que dificuldade! Foi impossível transpor sem lançar mão de encontrões, esbarrões grosseiros.
Lá dentro, o apertucho. Os sanitários eram pouco visitados. Em contrapartida, o lugar diante do espelho está um enxame.
_ Ele teve a coragem de te beijar? – Rafaela perguntou, com ar mais de indignação que de espanto, ao término da narração feita pela prima.
_ Teve.
Tinha sido mais fácil narrar toda a história que responder àquela única pergunta. Por um momento, Diana se sentiu arrependida.
Pudera. Apesar de uns poucos anos de diferença, o estilo de Rafaela está bem distante do de Diana. Rafaela teve um único namorado, com quem se casou. Nunca traiu. Nem ele pisou na bola.
Seria demais pedir que ela suportasse um caso desses sem emitir opinião que condiga com seu estilo de vida ou sua experiência. Raro o ser humano compreender o que está longe de sua experiência pessoal. Preconceitos, nesse sentido, apesar de injustificáveis, são inevitáveis num primeiro momento.
Talvez se não se tratasse da prima, por quem nutre carinho especial, Rafaela desse pouca importância. Afinal foi o que aprendeu nas aulas teóricas de Psicoterapia: o terapeuta não deve cercear o cliente, permitindo que seus próprios preconceitos atrapalhem o processo. Seria profissional.
A prima mais parecia sua irmã. Desde criança, a amizade sincera e excepcional as uniu. Preocupavam-se uma com a outra. Rafaela tem seis anos a mais. Talvez por isso conservasse a atitude de comando sobre a vontade da prima, quando Diana resolvia partilhar assuntos em busca de orientação. Inúmeras vezes, Diana agia sob a influência de Rafaela. Às vezes contra a própria vontade.
Ambas encontram nesta amizade a autorrealização inexprimível. Na condição de filha única, Diana ganha uma irmã. A relação com a prima a ajudou a socializar prazeres, abrir mão de interesses mesquinhos.
Para Rafaela, sendo a caçula de três irmãs e um irmão, é a oportunidade de ser a mais velha. Ainda que não domine a situação, ao menos tem voz ativa. Oportunidade que nunca teve com seus irmãos.
Num impulso, Rafaela lança mão do papel de repressora. Fala da inconveniência. Onde se viu dar corda a esse tipo de pessoa? O único termo que encontra para o professor é o de aproveitador. E o usava sem hesitação, a torto e a direito. Em sua cabeça, embora dispusesse de coração humanista, nessa situação requeria agir com rigor para evitar que a prima se desse mal.
Diana relata que algo a atrai nele, que o desejava com a mais sincera afeição.
A prima não abriu a guarda. Muito pelo contrário, o tom era ríspido.
_ Não acredito no que estou ouvindo. Acaso você quer ser amante do cara? Não. Tudo menos isso.
E Rafaela fazia todos os jeitos de pessoa inconformada, decepcionada.
Encurralada pela vontade do coração e pela terrível censura da prima, Diana não suportou. Chorou.
A prima se sensibilizou. Estava no direito de adverti-la, dar puxão de orelha. Homem casado, e mais velho, tornava o caso complicado. Mas magoar a amiga, isto não.
Nessa convicção, de repreender sem ofender, procurou mudar o tom da conversa. Apelou para conteúdo menos taxativo.
_ Foi mal. Não quis ser insensível...
Enquanto se desculpa, acaricia os cabelos da estudante.
_ Eu sei...
_ Você ainda quer minha ajuda?
_ Claro... – disse entre suaves soluços, provocados pela comoção interior que a atrapalhava.
_ Não significa que tenha que concordar com tudo que eu disser. Apenas gostaria que prestasse muita atenção. Tente extrair o que julgar verdadeiro. Não quero que fique assim arrasada.
_ Impressão sua, não estou arrasada. Só um pouco perdida quanto ao caminho que devo tomar. Gosto dele, mas não quero atrapalhar seu casamento.
_ Atrapalhar seu casamento? Me desculpa, mas você está muito enganada. Acha que conseguiria atrapalhar a vida familiar dele? Acredita que você seja a primeira que ele ataca?
_ Por que me diz isto? Você o conhece? Está julgando precipitadamente.
_ E quem disse que não o conheço?
Diana ficou perplexa.
_ Como assim? – quis saber detalhes.
_ Armindo de Souza e sua fama de conquistador. Antes de alunos e professoras de Ribeirão, colegas minhas de Botucatu, Campinas e Marília narraram as proezas do dom Juan.
A universitária permanecia calada. Queria intervir, cessar os comentários da prima, mas uma força a paralisara.
_ Saiba que esses detalhes nunca me interessariam, caso você não estivesse no papel de vítima. Odeio fofoca. Se você não fosse minha prima, mais que isso, se não fosse minha amiga, não me sentiria na obrigação de abrir os teus olhos para evitar possíveis encrencas. Sei que pode se ferir.
_ Entendo.
As palmas das mãos tapavam o rosto. As lágrimas abundavam. Estava disposta a ouvir os relatos. Nem ao menos podia dizer que eram invencionices. O mestre tantas vezes deu provas de não prestar. Suspeitara, em poucas semanas de contato, como mulher atenta, que o sujeito tinha tara. O professor modificava o tom de voz ou a expressão facial diante de qualquer rabo de saia que caísse no seu conceito de agradável. Ela tinha ouvido a Valéria, colega do segundo ano, afirmar que duas conhecidas tinham dormido com Armindo de Souza.
Rafaela achou melhor dar um tempo. Assistiria à prima, porém de maneira mais sutil. Nada de insistir que ela, Diana, era quem estava cometendo pecado. Não havia culpa em ter sido encantada por um aproveitador.
Determinou que a tarefa seria fazer com que a prima percebesse que sentir emoção verdadeira não tinha nada de mau. Mas a estudante deveria evitar ceder aos caprichos de pessoa sem caráter, como Armindo. Devia alertá-la que seria uma presa. Ele a usaria, e depois jogaria fora. Foi o destino de tantas. Com ela não seria diferente.
Que sofresse no início! Mais tarde, veria o quanto valeu a atitude para se libertar da situação. Havia vários rapazes na faculdade. Alunos e professores solteiros que dariam tudo para ter chance ao seu lado. Diana tinha que se valorizar. Deveria dar valor a uma pessoa que a levasse a sério. Não para saciar a vaidade ou prazer vulgar.
Saíram do toalete.
A animação persistia em boa parte dos rostos. A peteca raramente cai, quando o grupo adere, com convicção, ao alucinado exercício de embriagar-se, de divertir-se.
Durante a meia hora que as duas passaram no toalete, o grupo devorou litros e litros de cerveja. Comeram pizza e porções com igual voracidade.
Não sem razão, Diana e Rafaela notaram que os ânimos beiravam o limite máximo do bom senso. Estavam pra lá de Bagdá. Não há cruz mais pesada do que o sóbrio ter que suportar a presença do bêbado (e vice-versa).
Não houve qualquer espanto ou cara feia, quando as duas, quinze minutos depois, resolveram ir para casa. Despediram-se do grupo.
Com exceção de mais dois ou três desertores, a turma turbinada por ali permaneceu até duas da manhã.
Diz o ditado: “falar é fácil, difícil é pôr em prática”. Domingo à noite, o professor ligou para a casa dela. Diana havia levado um susto. Não se lembrava de ter passado o número do telefone.
_ E não me passou – respondeu ele à pergunta que ela não conseguiu deixar de fazer.
_ Hm.
_ Procurei seu sobrenome na lista telefônica. Passei por umas respostas negativas até acertar.
Ela meio sem jeito. Ele ficou sem saber o que dizer. Em seguida, houve reação inesperada. Pediu para esquecer o beijo e tudo o mais. Diana supunha que esse era o único motivo que fez o mestre ligar. Ele evitava comentar o caso.
Esquisito. Vencidos alguns minutos, Fiorini estaria tão envolvida num bate-papo. A conversa mais parecia entre velhos amigos. Desencanada, aparentemente desinteressada.
Impossível descrever que raio de conversa foi essa. O que interessa de fato é o fim. A conversa amaciou o espírito esquivo, temeroso de Diana. Serviu para preparar o terreno. O professor poderia atingir seus objetivos.
Como exemplo de mulher que se vê cativada, Diana tolerava. Não que perdesse de vista os conselhos da prima. Mas o papo agradável, ah, sabe como é.
É o jogo da conquista amorosa. O macho gastando o verbo por estar a fim da fêmea. As palavras são como doces encomendados, como perfumadas rosas brancas da Floricultura.
Se fosse homem livre e desimpedido, e que quisesse se unir, namorar, o recurso das palavras doces seria bem recomendado. Pena que o camaleão conquistador deita e rola no uso do recurso. Quantas esperanças iludidas? Indagaria Rafaela Fiorini.
Embora o jogo da conquista do macho só tenha êxito com a autorização da fêmea, e que a mulher possa até fazer uma má escolha entre as várias lábias que chegam a seus ouvidos num primeiro momento, mais tarde, levará em conta a atitude do sujeito para investir de modo duradouro na relação.
Presume-se que, para as mulheres conscientes, o engano pode acontecer uma vez, mas não duas. Têm a opção de largar o malandro. Em troca, dar as mãos a alguém que valha a pena.
Por mais que pareça extravagante, o que acontece é o seguinte: na cabeça do doutor Armindo, uma conquista amorosa produz o prazer que a caça ou pesca por esporte.
Diana viajava nas frases bem construídas do doutor. Empolgava-se, apesar de procurar esconder o sentimento diante do mestre. Iludia-se face às frases que aparentavam originalidade, mas que eram tão batidas no corre-corre da conquista.
Se quando jovem Diana ria dos exemplos do velho romantismo, considerando brega, agora que se vê alvo das românticas palavras, as aplaude intimamente, sentindo-se lisonjeada.
O romantismo não é prejudicial. Ao contrário, é rico nutriente. Ruim é quando o sujeito sem escrúpulo aproveita a necessidade de afeto da outra pessoa para manipulá-la.
_ Ribeirão Preto não é nenhum pólo norte. Dá para esquentar bem os miolos. O difícil é achar boa sorveteria.
_ Sorveteria?
_ Sim. Onde sirvam deliciosos sorvetes...
_ Mas claro que tem. E não só uma.
_ Pena que até agora não encontrei, pelo menos que valesse a pena.
_ Você foi a qual? – Diana perguntou meio desconfiada. Como o professor universitário, com tantas amizades na cidade, não conhecia uma decente sorveteria?
_ Fui àquela da Rua Moçambique.
_ Também pudera. Ali nem eu acharia graça. Você tem que ir à Sorveteria Gelados, na Nove de Julho.
_ Gosta de sorvete?
_ Claro.
_ Que tal saborearmos juntos? Quem sabe na terça-feira que vem.
De súbito, Diana despertou para a situação.
Gentilmente, procurou recusar o convite. Os golpes insistentes do mestre eram terríveis. Houve verdadeira batalha verbal.
No fim, a obstinação do mestre venceu a cambaleante recusa da aluna.
A vitória não foi completa. Faltou o acordo quanto à data. Na prática, apenas o consentimento de talvez um dia.
A quartanista pensou que desse jeito despachava o doutor. Na próxima vez que viesse com aquele papo, ela se manteria firme. Não daria chance. Nem que preciso fosse adiar o encontro.
O coração boicotou mais uma vez a consciência. Diana não levaria a diante o plano de recusa por muito tempo. Para ser exato, a teimosa amoleceria dali a três dias.
Na saída da faculdade, Armindo de Souza, com escancarada perseguição, aguardava no estacionamento. Gastou meia hora à espera da estudante. Local estratégico. Diana deveria passar por ali, estivesse de carro ou fosse pegar ônibus.
Logo que a viu, acenou.
Por educação, a estudante esperou que Armindo se aproximasse.
A conversa iniciou trivial. Pouco depois, ela, um pouco por querer fugir dos olhares inquisidores e outro tanto por razões acadêmicas práticas, indagou sobre o critério que o mestre adotaria para a avaliação do trabalho que deveria ser feito em grupo.
A carona veio como consequência.
Dentro do automóvel em movimento, Armindo largou o trivial, o arroz e feijão, e foi à mistura, como dizem os paulistas.
_ Ruim é saber que a minha presença te incomoda tanto – disse o doutor à queima-roupa.
A menina ficou meio espantada. Assunto que muda de repente, costuma baquear.
_ Imagina – quis dissuadi-lo da ideia ofensiva.
_ Ora, se o convite para tomar sorvete gera mais de meia hora de negativa ao telefone, que posso eu mais supor?
Diana se mantém muda.
_ Te entendo. Vai ver avancei o sinal. Quem sabe dei a impressão que não prestava. É sempre assim... No fundo, pessoas como eu, de alma espontânea, liberal, são tratadas como sendo mau caráter. O maldito estigma de lobo. O mundo é dominado por hipócritas, fanáticos moralistas. O que eles esquecem é que ninguém força quem quer que seja a fazer o que não interessa.
O papo tortuoso que o professor despejava é movido pela desconfiança. O sexto sentido do conquistador o alertava. Talvez a quartanista soubesse de suas aventuras, de sua vida pregressa, pouco valorizada por pessoa séria e que quer ter um único parceiro, como Diana.
_ Não entendi... – a estudante procura se sintonizar.
_ Vou te contar uma coisa que me aflige demais, mas que não posso me calar. É sobre a fama que me imputam. Sou considerado tarado, malvado, inescrupuloso.
O sabido desfiou o terço. Quis pôr tudo em pratos limpos, para se apresentar ao coração da pupila, se não puro, pelo menos sincero, ainda que para isso assumisse a fama de vilão.
Diana, estática. Ouvia o competente professor de Fisiologia reclamando da injustiça que o perseguia. O blábláblá daria inveja a muitos atores profissionais.
Outra pessoa que inteligente, que estivesse diante da confissão de culpa, já teria cortado o assunto do sujeito, tirando qualquer resquício de esperança de envolvimento.
Mas Diana, às volta com a paixão, deixava a inteligência paralisada. E cedeu ao papo.
Aceitou o convite para a sorveteria.
Duas semanas mais e ocupava a posição de amante. Bem, amante sem ir para cama. Embora com vivência amorosa, recusou ir para cama com o mestre. Queria um tempo. Deixar a coisa rolar. Amadurecer o relacionamento.
Coração satisfeito, agora era tolerar o ataque da consciência, recriminando-a por ceder. Acusando-a de ladra de marido. Chamando-a de vagabunda. Agindo semelhante a toda consciência de pessoa de sensibilidade apurada, como se espera de uma budista.
Havia lançado mão de metas Daimoku para se livrar da tentação, para fugir do professor, antes do encontro que daria início ao namoro. E o número de Daimokus não foi menor nos dias durante o tempo que zanzou na condição de amante.
Era uma barra para ela se sentir em falta com o Budismo.
Para encerrar o capítulo e deixar a doce recordação do começo do relacionamento, que renderá muitos comentários, nada melhor que recordar o primeiro dia de namoro.
Para não variar o clima romântico, era noite, por volta das nove horas.
Diana enfeitava-se dentro do vestido longo, azul-marinho. Os cabelos bem escovados, lisos e sedosos, como de costume, exceto nas ocasiões em que os embrulhava na toalha de banho, debaixo do lençol, esvoaçados por alguma ventania.
Lábios com excesso de batom. Bonitos de longe, mas de perto produzindo sabor enjoativo no professor. Diana nunca curtiu usar batom para impressionar. Na primeira vez que tentou, o resultado foi frustrante.
O Tempra que dirigia estava uma quadra distante do local no qual ela e o professor se encontravam. Um vasto gramado. A quinhentos metros da calçada mais próxima. Contava com pedras gigantescas, no formato arredondado dum queijo mineiro, grande rodela deitada em cima da grama. Lugar próprio para os casais de namorados que queriam fugir da vista dos transeuntes. Mais seguro que os amassos nos carros.
Pena que lugar assim é bem visitado pelos bandidos, assaltantes. Não poupam nem os casais apaixonados em sua busca de privacidade. Pelo contrário, são alvos preferenciais.
A despeito do perigo, é de tirar o chapéu para a sugestiva paisagem que o local oferece. Dá para o fundo dum vale. Abundante em árvores, matos.
Uma cerca delimitava a praça visitada pelos pedestres da imensa área verde. Sinalizava a condição de propriedade particular, ainda que vastíssima.
O relógio dele marcava nove horas. O silêncio e a límpida noite, com o firmamento repleto de estrelas, davam a impressão de ser mais tarde. Hora da manhã. Gastaram vinte minutos sentados e tagarelando.
Levantaram. Nesse momento, a tagarelice cedeu à sede beijoqueira dele.
Óbvio que o atrevimento fez Diana levantar sobressaltada. Afastou-se em direção à cerca. Armindo correu ao seu encalço. A universitária estava de costas. Quando a virou, percebeu que chorava.
Como não chorar? Como se conter? Dentro dela gritavam sentimentos antagônicos. Queria-o, mas detestava reconhecer a horrível condição de amante, de instrumento de destruição de casamento, ceder a uma pessoa sem-vergonhice.
As palavras de Rafaela ressurgiam com vibração, perturbando os nervos.
Por habilidade, o caçador, livre de sentimento de culpa, soube manejar o que atormentava Fiorini. Explicou o fracasso do casamento, porque há muito tempo não amava mais a esposa. Se ele tolerava a companhia da Sra. Souza era por causa dos filhos.
Despejava montes de justificativas, não prezava fidelidade quando diante em de uma conquista em potencial.